A Arte Algorítmica e a Visualização de Pensamentos
A arte generativa é mais antiga do que muitos pensam, bem anterior a esses modelos neurais generativos atuais como DALL-E, Disco Diffusion e Midjourney. Diversos artistas, ao longo de muitos anos, aplicam algoritmos para criar obras de artes nem mais nem menos legítimas do que obras criadas com o uso de qualquer outra ferramenta tecnológica, sejam aquelas ferramentas mais rudimentares e tradicionais como martelo e talhadeira, sejam mais avançadas como softwares de modelagem e renderização em 3D.
Muito natural e logicamente, é possível usar IA como uma ferramenta para se obter resultados genuinamente artísticos, assim como é possível fazer arte com tudo que se possa imaginar. Mas não podemos confundir um pensamento qualquer com o trabalho artístico. Se eu imaginar e digitar “uma floresta dentro de uma garrafa”, e em seguida a IA cuspir exatamente o que eu pedi — na verdade o que eu pensei — , há muito pouco, ou quase nenhum trabalho criativo envolvido nisso, mesmo que o resultado do trabalho (inteiramente realizado pela IA) seja impressionante.

Então, existe uma clara distinção entre o uso legitimamente artístico de algoritmos na criação de obras de arte, e a digitação de um texto e sua imediata “tradução” em imagem.
A arte é um processo mais ou menos extenso de conceituação, de definição e formulação de ideias, que começa com esboços e rascunhos, passando por um processo de seleção, de revisão, descarte, etc. Trata-se de um processo de construção que requer o domínio de técnicas específicas e o seus empregos conscientes e inteligentes para se chegar a um resultado igualmente específico e original, isto é, com vida, com sangue, com propriedade, e quanto mais inteligente e profundo for o conceito, a visão ou a ideia, e quanto mais caprichado e detalhista for esse processo todo, mais artístico e valioso é o resultado (a obra). Assim, não importa se o artista usa sucatas ou IA para dar vida à sua visão, a uma ideia ou a algum conceito. O que importa é a criatividade na conceituação, a profundidade de uma ideia, a inteligência da elaboração, enfim, coisas oriundas da inteligência biológica, e não dessa aproximação de complexas funções matemáticas, reconhecimento e reproduções de padrões realizados inteiramente por um modelo neural, onde a única coisa oriunda da criatividade é apenas o pensamento: “uma floresta dentro de uma garrafa”.
Atualmente está havendo essa inundação de artes geradas por IA, e isso tem gerado muita controvérsia. Algumas plataformas e comunidades artísticas estão, inclusive, banindo esse tipo de arte. Com toda razão, alguns artistas estão reclamando que suas obras estão sendo usadas nos datasets [bancos de imagens fundamentais para treinar esses modelos generativos] sem a sua autorização! De um lado temos reclamações e reivindicações legítimas, mas por outro lado não podemos exagerar a contundência e a legitimidade dessas objeções a ponto de nos esquecermos que a IA não é diferente de qualquer outra ferramenta, e que a arte generativa não é diferente de qualquer outra técnica. Basta apenas nos lembrarmos do básico da educação artística para distinguir uma coisa da outra e não exagerarmos em nossas paixões e ressentimentos.
Se por um lado muitos asseveram e generalizam a arte neural, alegando que não é arte, outros também radicalizam as antíteses, alegando que o resultado de qualquer prompt de texto é arte. E numa terceira via, sempre mais neutra, não importa muito como foi processado e obtido um certo resultado, e lembrando que quanto mais a tecnologia avança mais impressionantes são os resultados, no final, talvez o que realmente importa para a grande maioria, é se o trabalho é agradável para os olhos, independentemente da suas propriedades artísticas.
Desde o ano passado temos observado que há muita desonestidade de pessoas que se valem dessas ferramentas e se apresentam como “artistas”, inclusive para obter vantagens e lucros. Vimos, por exemplo, coleções de NFTs sendo comercializadas sem que os consumidores soubessem que aquelas artes não eram resultantes do trabalho de um artista, mas de um aplicativo que qualquer mortal pode instalar no seu celular e, assim como os “artistas” (os charlatões que as comercializavam), criar suas próprias coleções de peças com os mesmos traços, com as mesmas imperfeições, com os mesmos aspectos e as mesmas características visuais, sem precisar pagar nada por isso.
Por outro lado, desde 2015 temos pesquisado a IA com foco em atividades criativas, e temos observado que se trata de uma ferramenta incrível não apenas para a criação de belas-artes, mas especialmente no desenvolvimento de projetos de engenharia, arquitetura e design, e daí surgiu o Laboratório Neural Design — onde perseguimos os mesmos objetivos desde sua fundação há 7 anos: a aplicação da IA em atividades criativas e estratégicas.
Embora o foco mais recente de nossas pesquisas seja a visualização de pensamentos, onde temos explorado esses modelos mais atuais, o principal objetivo do Neural Design é a ampliação de nossas faculdades cognitivas e criativas através da IA.
Antes de prosseguirmos, devemos destacar alguns artistas que usam IA e que provam que a arte neural é uma técnica tão legítima como qualquer outra técnica artística.
Mike Tyka foi uma grande inspiração de todo o nosso projeto, e não apenas em relação ao uso da IA em atividades criativas, mas na nossa compreensão dos mecanismos internos das redes neurais, com ênfase no campo da visão computacional (computer vision). Ele nos ajudou a nos apaixonarmos pelas redes neurais artificiais (ANNs), e o destacamos em primeiro lugar de nossa lista não apenas por isso, mas também por ser um dos precursores do uso de redes neurais como arte.

Alexander Mordvintsev foi o inventor do Google Deep Dream, e por isso não deveria estar em segundo na nossa lista, mas ao lado de Myke Tyka. Foi o primeiro pesquisador a explorar e descobrir o que e como as inteligências artificiais enxergam o mundo, revelando que os primeiros modelos de visão computacional tinham uma certa obsessão por olhos e gatos:

Poderíamos prosseguir destacando o trabalho de muitos artistas, inclusive daqueles que usam esses modelos neurais mais modernos como Midjourney ou Disco Diffusion, demonstrando que até mesmo esses modelos mais populares e acessíveis permitem que artistas desenvolvam traços originais, suas identidades e artes com legitimidade, lembrando, mais uma vez, que tudo pode ser usado para criar arte com propriedade e legitimidade.
Assim, há uma linha aparentemente tênue entre a arte (neural) e a pura e bruta “tradução” de textos em imagem. Entretanto, esses modelos mais recentes e avançados de tradução de textos em imagens pode levar a outro patamar pesquisas como a Modelagem Generativa Neuroadaptativa. Trata-se da combinação da Interface Cérebro-Computador (BCI) com a IA generativa, cujo objetivo, a grosso modo, é a visualização de pensamentos.
Sinais eletroencefalográficos permitem a engenharia de interfaces cérebro-computador capazes de movimentar cursores e digitar textos, por exemplo, assim já possibilitando o uso de computadores sem precisar usar as mãos para teclar, movimentar o mouse e clicar nas coisas, nos permitindo usar computadores e navegar apenas com o pensamento. Portanto, a integração da neurotecnologia com a IA já estão nos permitindo ir além de digitar e movimentar o mouse e inferir intenções mais complexas através desses sinais cerebrais.
De certo modo, a criação da imagem da “floresta dentro de uma garrafa” poderia ter sido totalmente criada com o pensamento, uma vez que já temos as interfaces cérebro-computador capazes de digitar textos, bem como já temos os modelos neurais generativos capazes de criar imagens foto-realísticas e com grande precisão na interpretação dos textos que digitamos.
Uma coisa está bem clara: a simbiose entre máquinas e humanos está avançando para um patamar inacreditável, quase alienígena. Máquinas estão cada vez mais sensíveis às nossas intenções nos dois sentidos: no sentido de captar nossos pensamentos, e no sentido de traduzi-los e projeta-los em imagens.
O interessante dessa pesquisa que temos realizado com modelos generativos, é que os resultados algumas vezes nos surpreendem. Temos usado diferentes modelos, alguns que levam horas para renderizar a imagem, e outros que levam apenas alguns segundos. Foram meses de experimentos atrás de experimentos, e enquanto a maioria não traduz exatamente o que pedimos, onde é necessário aprender e aprimorar a parametrização desses modelos e a textualização (o prompt), o fato é que às vezes os modelos geram imagens mais profundas do que aquilo que imaginamos.
Atualmente estamos finalizando um trabalho artístico. Estamos concluindo uma HQ onde usamos o modelo GPT-3 para escrever o roteiro e o modelo Disco Diffusion para gerar as imagens de um conto sobre uma bruxa no Século XIII. Tanto o roteiro quanto algumas das imagens são exemplos de coisas que superaram a história e as imagens que tínhamos em mente.

Assim, vale repisar que o trabalho artístico é esse processo onde desenvolvemos a ideia de elaborar um HQ, onde escolhemos o tema, onde selecionamos as imagens, num empreendimento contando com diversos artistas e que levou alguns meses para ser concluído, mesmo usando IA para criar as artes e os textos. Por outro lado, parece-nos ainda mais fascinante esse futuro que estamos visualizando e projetando, onde poderemos visualizar nossos sonhos.